quarta-feira, 15 de junho de 2011

A Isaura



A Isaura nasceu no século passado, não no que antecedeu este mas no outro, e um dia contou-me que ainda criança assistiu escondida no quarto e transida de medo, à passagem do Cometa Halley. Depois a Isaura cresceu, aprendeu a falar francês e a tocar piano, mas como era teimosa tirou também ciências e matemáticas, quando as ciências e matemáticas se tiravam juntas na universidade e ela era a única mulher entre homens. Diziam as más-línguas da família, há sempre muito más-línguas em todas as famílias, que a Isaura foi para a universidade porque era feia, tinha muitos irmãos e não iria nunca encontrar marido, já que as mulheres sem dote apenas arranjariam marido se fossem bonitas. A família da Isaura deixou-a estudar, mas à primeira oportunidade casou-a com um homem que enriquecera no Brasil e que procurava mulher que lhe desse o estatuto social que não tinha e a Isaura que gostava muito mais de ciências e matemáticas que uma vida respeitável de senhora casada, foi enterrada numa pequena aldeia do Alentejo.

Não sei se a Isaura quando jovem fora bonita ou feia, lembro-me dela sempre bonita, com mil rugas e vincos na cara, mas esplendorosamente bonita. Nunca a vi sem batom nem sem sapatos de salto alto e foi com ela que aprendi os elementos da tabela periódica e que a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.

A Isaura detestava o Alentejo e a planície e contou-me uma vez em segredo, que tentara aprender hipnotismo para convencer o marido a regressarem a Lisboa, mas quando um dia o marido morreu, bastante mais cedo do que seria suposto, a Isaura que sempre sentira que a planície e a pequena aldeia a asfixiavam, nunca mais saiu dos muros altos que cercavam a casa onde vivia.

Penso que a Isaura nunca gostou lá muito de crianças, bastavam-lhe as ciências naturais, a matemática e coleccionar reproduções de quadros renascentistas que colava em serapilheira que tornava a colar em contraplacado e com os quais foi cobrindo todos os centímetros disponíveis das paredes da casa onde se auto exilou.

Antes da minha pré adolescência eu e a Isaura tornamo-nos inseparáveis e na parede frente à mesa onde nos sentamos quase diariamente durante 10 anos, tive sempre à minha frente uma reprodução do Ritratto de Dona.

Depois a vida correu, e um dia em Coimbra soube que a Isaura tinha morrido na planície e chorei ao lembrar que na última conversa que tínhamos tido poucas semanas atrás, a Isaura de batom vermelho nos lábios me perguntara quem era Madonna e porque razão tinha despido as cuecas durante um concerto em Paris.

Há poucos dias em Milano, reencontrei a Isaura sentada frente ao Ritratto de Dona.

3 comentários:

Luis Royal disse...

até eu já tenho saudades da Isaura!
um grande abraço para os dois (um para si e o outro para lhe enviar quando voltar a ver o retrato).
obrigado.

Bruno disse...

Mas que bela homenagem!!! Ficámos todos com saudades da Isaura.

zé disse...

que bonito!