quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

«Le bonheur n'est peut-être qu'un malheur mieux supporté.»

Marguerite Yourcenar - Alexis ou le traité du vain combat

Para não ficarem com a ideia que a minha edução/formação em bixice (bichice) apenas consistiu nos visionamentos dos vídeos dos Pet Shop Boys e nos desfiles da Dolce&Gabbana, que foram aliás fundamentais, entre muitos outras coisas, para a bixa (bicha) que sou hoje, lembrei-me de um livro maravilhoso da Yourcenar.

A maior parte dos livros da Marguerite Youcenar, lésbica por sinal, fizeram e fazem parte das traves mestras da minha literatura de bixa. Se me lembrei do “Alexis ou O Tratado do Vão Combate “ (1929) e não do “Memórias de Adriano” (1951), um dos livros da minha vida, ou do “Obra ao Negro” (1968), outro livro da minha vida, foi pelo facto do Alexis, traçar o percurso interior daquilo a que hoje chamamos coming out.

O livro escrito em 1929 não é mais que a carta de despedida, escrita na primeira pessoa, que o pianista Alexis escreve à sua mulher Monique antes de a abandonar.

Alexis é pianista, homossexual, casado e resolve partir abandonando a mulher, não porque não a ame, não porque o amor que lhe dedicou enquanto com ela viveu tivesse sido menos “puro”, mas porque desistiu de combater a sua homossexualidade.

A carta toma a forma de uma viagem interior aos sentimentos e pensamentos de alguém que um dia descobre que a atracção sexual que sente não é permitida socialmente, não conseguindo porém deixar de a concretizar, já que a luta interna contra o que sentimos, não é mais que um vão combate.

Na longa carta, tal como em quase todas as personagens de Yourcenar, Alexis interroga-se -se a partir das memórias do passado, na tentativa de compreender melhor o mundo, o que mais não é que a tentativa de compreensão de si mesmo.

Em Alexis, a maior parte das interrogações nascem das memórias guardadas acerca da descoberta e da consumação do desejo homossexual. Ao lermos as interrogações de Alexis, um pianista saído da memória de Yourcenar em 1929, quando esta tinha então 25 anos, podemos aceder aos pensamentos e às interrogações, que ainda hoje assolam qualquer homem ou mulher que descobre a sua homossexualidade ou que a vive em duplicidade.

“ … Uma vez que alguma coisa de tão grave se passou comigo, pareceu-me, ingenuamente, que eu deveria ter mudado. O espelho, porém, não me enviou senão o reflexo do meu rosto de sempre, um rosto inquieto, angustiado e pensativo. Passei a mão pelas faces menos para apagar o vestígio de um contacto do que para assegurar-me de que a imagem reflectida era a minha. O que torna a volúpia tão terrível é talvez o facto de que ela nos ensina que temos um corpo. Antes, ele não nos servia senão para viver; a partir de um determinado momento, sentimos que esse corpo tem a sua existência particular, os seus sonhos, a sua vontade, e que, até à nossa morte, teremos de levar em conta a sua presença, ceder, transigir, ou lutar. …”
Yourcenar, Marguerite.(1929). Alexis ou o tratado do vão combate.

Vendo bem, o livro vai a caminho dos seus quase 100 anos sendo já um respeitável octogenário, mas a sua actualidade seria tocante, não fosse a literatura da Yourcenar só por si universal e intemporal. Depois há ainda a prosa da Yourcenar, as palavras da Yourcenar, que nos catapultam directamente para as portas do Olimpo.

" ... Embora este tema outrora considerado ilícito tenga sido, nos nossos dias, largamente tratado, e até explorado, pela literatura, adquirindo assim uma espécie de semidireito de cidadania, parece de facto que o problema íntimo de Alexis não é actualmente menos angustiante ou menos secreto do que em tempos, e que a relativa facilidade, tão diferente da verdadeira liberdade, que reina nesta matéria em certos meios muito restritos, apenas conseguiu criar no público em geral um mal-entendido ou uma reserva suplementar. Basta olhar atentamente á nossa volta para nos darmos conta que o drama de Alexis e de Monique não deixou de ser vivido e continuará sem dúvida a sê-lo enquanto o mundo das realidades sensuais se mantiver impedido por pribições, as mais perigosas das quais serão talvez as da linguagem, eriçado de obstáculos que a maior parte das pessoas evita ou contorna sem grande embaraço, mas nos quais tropeçam quase inevitavelmente os espíritos escrupulosos e os corações puros. Os costumes, digam o que disserem, mudaram demasiado pouco para que o dado central deste romance tenha envelhecido muito. ..."

Escreveu Yourcenar no prefácio que acrescentou ao livro em 1963.

A ler e a reler.

Li o livro há muitos anos, não sei que edição portuguesa há por aí no momento. A minha edição tuga é Difel com tradução de Gaetan Martins de Oliveira.

Como Alexis, segundo livro de Yourcenar e primeiro romance, foi a única obra que yourcenar não reescreveu cada vez que o foi republicado, mantendo inalterável durante toda a sua vida a versão original, aventurei-me à leitura da edição da Gallimard. Para quem ainda consegue ler em francês, recomendo a sua leitura em duplicado, para perceber, como há escritores capazes de transformar as palavras em transcendente.

As últimas edições no original que tenho visto do livro, compilam “Alexis” e “Golpe de Misericórdia” e é da Gallimard.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom. Sempre achei Yourcenar impossível de ler, mas depois disto vou tentar ler este.

Miguel