sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Objectos Perfeitos #11

“ …
Morei numa casa velha,
Velha, grande, tosca e bela,
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela…

Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos
…. “

José Régio

Como no poema de Régio, morei numa casa velha cheia de obsidiantes memórias, sol nas janelas e escuro nos recantos. Como as fichas de luz não abundavam, sempre que precisávamos de ir a um dos tais recantos escuros, utilizávamos um objecto ao qual todos chamávamos gambiarra, que não era mais que uma lâmpada com vários metros de fio. A lâmpada estava dentro de uma armação de arame, que para além de nos proteger os dedos do contacto com a lâmpada que em escassos minutos sobreaquecia, servia também para pendurar no prego ou saliência que mais perto do escuro estivesse.

A gambiarra era utilizada desde as grandes limpezas de verão à necessidade de idas nocturnas ao jardim e até quando a meio de um serão, a lâmpada incandescente de alguma das divisões fazia pum! e precisava de ser substituída, lá entrava a gambiarra em acção.

Em segredo, roubei algumas vezes a gambiarra e foi com ela que durante anos explorei o sótão imenso e foi graças a ela, que o temível espaço deixou de ser local de terror para passar a ser palco de aventuras imaginadas.

Depois gradualmente a grande casa velha passou a ter pontos de luz em todos os recantos escuros, mas eu já era crescido e já tinha aprendido sozinho, graças à gambiarra, que todos os recantos escuros só nos alimentam os medos, até que até eles cheguemos com a luz de uma gambiarra na ponta dos dedos.

Já não regresso nem ao sotão nem sequer à grande casa velha, mas ainda hoje gosto de casas velhas, mesmo que nelas já não caiba escuro nos recantos suficiente, para que alguma vez tenha sentido a necessidade de voltar a ter uma gambiarra.

Todos os meus objectos perfeitos passaram por um estágio cá em casa.


(apontamento flashado com o meu moleskine digital á minha May Day no seu habitat cá em casa)

Alguns foram comprados já com o estatuto de possíveis objectos perfeitos e tornaram-se objectos perfeitos findo o seu período normal de estágio. Outros rapidamente ao fim de muito pouco tempo, revelaram que nunca seriam perfeitos. Mas, os mais perfeitos, são aqueles que se tornaram perfeitos por eles mesmos, tendo eu apenas descoberto que já eram há muito tempo perfeitos, sem que disso eu tivesse noção.



A minha gambiarra, ou melhor a Mayday do Konstantin Grcic é um desses objectos. Sim é primeiro que tudo um objecto objecto e não um candeeiro. É um objecto de luz, é a gambiarra da minha casa.

Foto de uma Mayday via Flos

3 comentários:

Luis Royal disse...

grande escolha.
nos cantos cá da casa respiram 2 maydays!
não os trocamos por nada e estamos convictos de que ainda cá cabiam mais.

poor guy fashion victim disse...

Também já tive vontade de ter uma segunda, nem que fosse para ser numa cor diferente. Ainda não aconteceu porque ainda não arranjei o canto onde a arrumar. Qualquer dia surge

Anónimo disse...

Bonito texto. Isto é o que eu acho que devemos valorizar nos objectos: as memórias que nos despertam.

Abraço.

João